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As varinas foram fenícias? – por José de Oliveira Neves

Este título encabeça um magnífico texto da escritora Marina Tavares Dias, acompanhado de belíssimas fotografias das varinas dos anos 30, no seu livro: Lisboa Misteriosa, da editora Quimera.
Começa por contar uma história, em voga no século XIX, que atribuía às varinas origem fenícia.


Escreve Marina Tavares Dias: “Dois diletantes estão pregados à porta da Casa Havaneza, no Chiado, entretendo o tempo na avaliação carnal do mulherio que passa. Entre os espécimes a que fazem olhinhos, registam com agrado a beleza superior das peixeiras. Passando elas, não se contém um dos imbecis em lhes atirar a frase feita:  “Que belos exemplares de raça fenícia!”
De entre as ovarinas, lestas na resposta, uma replica logo:  “Fenícia é a sua tia!”
Gustavo de Matos Sequeira considerava a varina como uma “herança fenícia refundida em moldes gregos, com atributos que atestam tal herança: tez morena, feição carregada, olhos escuros, tronco curto e direito e porte altivo.”

Varino e Vareiro
Pinho Leal escreveu que a designação de “varino” e de “vareiro” abrangia todos os habitantes da orla marítima que vai de S. Jacinto até Espinho, o que é errado, pois deveria ser atribuída apenas aos habitantes de Ovar (“ovarinos”).
Caldas Aulete (Dicionário Portuguez) atribui a herança etimológica a uma tribo de suevos, denominada “varinos”, e historiadores mais recentes explicam-na através da mecha, ou vara com que se muniam os moliceiros da Ria. A respeito desses lindíssimos barcos que vão sendo cada vez mais raros, tenho lido em muitas ilustrações de revistas e jornais que são de origem fenícia, indo, deste modo, ao encontro da tese desses historiadores.

As "Varinas" de Lisboa
A etimologia da palavra “varina” tem gerado muitas discussões.
“Tal como a fadista da Mouraria, a peixeira da Madragoa foi tema inesgotável de romances populares, peças de teatro, poemas mais ou menos famosos, pinturas, esculturas, desenhos, caricaturas e fotografias artísticas”, diz-nos a autora de “Lisboa Misteriosa”.
Depois da construção da linha-férrea, partiram para Lisboa, de Ovar e povoações vizinhas da beira-ria, especialmente da Murtosa, muitos homens e mulheres para procurarem o trabalho que não encontravam nas suas terras.
Habituados a tarefas árduas no mar ou na praia, onde começavam, desde crianças, a puxar e a carregar com as redes e cordas das companhas do Furadouro, eles, ainda muito jovens, encontravam nas águas do Tejo o seu modo de vida, trabalhando nas fragatas, que eram, ao mesmo tempo, a casa onde ganhavam o sustento deles e da família, e onde comiam e dormiam. Elas, acostumadas a calcorrear caminhos longos de canastra à cabeça, apregoando a “sardinha do nosso mar”, facilmente se adaptavam a correr as ruas de Lisboa apregoando o “peixe fresco”, “viva da costa”, “pescada do alto”, e outros pregões que, como estes, deixaram há muito de se ouvir nesta cidade.

Varina de Lisboa que, por 1930, segundo
Marina Tavares Dias, começou a desfazer-se
dos seus acessórios

Dizia o viajante e escritor René Bazin, em 1895: “Na rua próxima (da Praça da Figueira), nas que se lhe seguem, em todas as ruas de Lisboa simultaneamente, de canastra à cabeça apregoam o peixe fresco… Algumas dessas mulheres são lindíssimas.”
Marina Tavares Dias continua a descrevê-las no seu livro duma forma encantadora, dizendo: “As mulheres de Ovar deixaram as chatas e as labregas da ria de Aveiro e migraram, nos primeiros comboios, para um dos bairros mais pobres de oitocentos: “A Madragoa”. Mais adiante fala-nos da indumentária “de características tidas por sagradas, passou a incluir o chapelinho de feltro, cinta de lã a altear a saia axadrezada, avental e, apoiando a canastra, a célebre rodilha ou “sogra”. “Uma patrona, bolsinha lateral também de feltro, servia para guardar os trocos”.


É curioso que quase todos os articulistas de jornais ou outras publicações, quando escrevem sobre as varinas, referem sempre o bairro da Madragoa como sendo uma espécie de colónia onde se agrupavam as peixeiras de Lisboa, esquecendo-se de Alfama, outro bairro típico da capital, onde moraram muitas vendedeiras de peixe e fragateiros de Ovar, que por lá deixaram descendência. Há uns anos atrás, era de Alfama a maior parte dos excursionistas que vinham de Lisboa a Ovar para verem o nosso Carnaval.
Hoje, com o peixe congelado e as grandes superfícies de supermercados, as varinas de Lisboa desapareceram. O mesmo aconteceu com os fragateiros e profissionais de outras artes do Tejo, que fizeram história no passado e que se foram perdendo no tempo, mas que devem ser recordadas para não se perderem também na nossa frágil memória.

TEXTO: José de Oliveira Neves
FONTE: jornal ovarense "João Semana" (edição de 15/09/2005)