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Aron Hakodesh de São Vicente de Pereira – Ekhal – Património judaico – Investigação: padre Bastos e jornalista Fernando Pinto

Mais do que história, o respeito (I)

Jornal JOÃO SEMANA (01/03/2019)
TEXTO: Manuel Pires Bastos

O Aron Hakodesh (armário da Lei)

Mais do que a história de um monumento que, pela sua singularidade arquitetónica e cultu­ral, se apresta a entrar no acervo do património nacional, pretendemos com este trabalho pôr em relevo as providenciais circunstâncias que permitiram conservar intacto, ao longo de cinco séculos, o Aron Hakodesh de São Vicente de Pereira e sublinhar o procedimento exemplar da família Martins, que desde o início do século XIX manteve devoluta aquela velha casa, merecendo especial menção os seus últimos proprietários, Padre Juiz Domingos Martins de Oliveira e Padre António de Oliveira Martins, os quais, conhecendo e respeitando a história comum do povo hebreu e do povo cristão, garantiram a preservação desse património até aos nossos dias[1].

Foi na década de 80 que passei a conhecer o P.e António Martins (27/01/1921-26/04/1989), regressado de Moçambique, que celebrava missa aos domingos, na Capela de Santo António, em Ovar. Residindo em S. Vicente de Pereira, perto da capela de São Geraldo, na casa assobradada do Rexio de Cássemes, que fora de seu tio, P.e Juiz Domingos Martins de Oliveira (17/05/1890-13704/1951), e que pertencera a seus ascendentes maternos desde o casamento, em 1816, de Manuel Martins de Oliveira (†1862), da Rua Nova de Válega, com Ana Maria Gomes da Conceição (1798-1879), esta possivelmente até aí domiciliada na velha casa térrea de origem judaica que se situa do outro lado da rua[2].

Registo de uma atafona
No quintal dessa antiquíssi­ma casa de lavoura, desabitada há pelo menos dois séculos, e onde, até há pouco se criavam galinhas e ovelhas, e onde o P.e António mantinha algumas col­meias, das quais me abastecia de mel, tive a fortuna de observar, nos anos oitenta, uma atafona desativada, com a nora e o res­petivo moinho em estado de de­gradação, o que me despertou curiosidade e me levou a falar dela ao pelouro da Cultura mu­nicipal, na pessoa da Dr.ª Ângela Castro, que levámos, posterior­mente, a visitar o local, tal como fizemos com outras pessoas ami­gas, entre as quais o P.e António de Pinho Nunes, colaborador do nosso jornal[3].

Registo fotográfico de um armário
Entretanto, ainda antes da morte do P.e António (1989), ao vasculhar um recanto da velha casa, algo de imprevisto se nos deparou: um estranho armário de pedra embutido na parede de uma pequena sala, estrutura que registei fotograficamente e que levou muito tempo a interpretar. Um lugar de oração? Um espe­cioso altar cristão? (Havia sacer­dotes na família, e até ouvi dizer que estiveram ali recolhidos sa­cerdotes fugidos da guerra civil de Espanha…)
Cheguei a interrogar-me se não seria um “altar judeu”. Mas como seria isso possível em terra profundamente católica? E nem a fotografia, que eu olhava oca­sionalmente na janela do álbum em que lhe dei destaque, respon­dia às minhas interpelações… E nas ocasionais pesquisas que fazia em S. Vicente sempre ou­via respostas negativas acerca da existência, ali, de famílias de origem judaica.
Só Lauro Santos, da família Martins, me deu o lamiré de que duas das suas tias lhe falaram de terem habitado ali “famílias judias”[4], acrescentando recen­temente (em 23 de janeiro de 2019), que também seu pai, Ho­rácio Santos, lhe falou nisso[5]. E, mais recentemente ainda, o Dr. Álvaro Ribeiro, de Maceda, deu-me a saber que o P.e Antó­nio, quando ambos frequenta­ram o Seminário do Porto, se referiu à presença de símbolos hebraicos na velha casa da famí­lia, e que conviveu, no Furadou­ro, com raparigas de S. Vicente de quem se dizia poderem ter ligação com gente judaica.
Penso que o silêncio que se mantinha sobre essa possível ligação genética explicar-se-ia por receio de reação antissemita.
Até por isso merece reco­nhecimento a atitude reservada e positiva dos dois sacerdotes Martins em relação àquele “ar­mário sagrado” que fotografá­mos, e que eles viam como sinal religioso a manter como relicá­rio da fé judaico-cristã dos re­motos moradores da casa, sendo ou não ascendentes da sua pró­pria família[6].
Vários anos correram. Em 1989, quando da morte do Padre António, não deixámos de estimu­lar as autarquias locais a adquiri­rem o prédio, que pertencia, agora, a D. Matilde Trigo, para servir de Museu da freguesia. Nessa altura, como se lê na revista “Reis” de 1997, a nossa atenção centrava-se ainda na atafona, alertando para, “através de um protocolo, a restau­rarem ou a reconstruirem em local onde possa ser visitada pelo públi­co”[7] (O re­tardamento da nossa interven­ção escrita em relação com o “nicho de pe­dra de configu­ração estranha daquela secular moradia” de­veu-se ao facto de então não termos perce­bido ainda a sua origem e a sua verdadeira função.)
Por 2003, um jovem estudante de Arqui­tetura de S. Vicente de Pereira, Paulo de Carvalho, apresentou como estudo de curso o projeto de um Centro Interpretativo da lavoura a implantar ali, apre­sentando-o ao presidente da Junta de Freguesia, Filipe Mes­quita, como proposta de uma “Quinta Pedagógica”, tendo em conta a casa secular e os respe­tivos anexos, incluindo, a nas­cente, uma casa de arrumos, de muito recente construção (séc. XIX–XX), não fazendo alusão ao pentassecular “armário” da pequena sala[8].
Filipe Mesquita, a quem, por diversas vezes, falara da velha casa como ideal para se tornar es­paço museológico da freguesia, acabou por apresentar à Câmara a proposta do jovem arquiteto, mas sem resultado imediato.

Altar judaico (Sabugal)
FOTO de Rui Mendez ("Olhares/2008")
A confirmação do achado
Em abril/maio de 2012, na re­dação deste quinzenário vareiro, ao preparar o texto "Pereira" da autoria do nosso colaborador e ilustre medievalista Dr. Armando de Almeida Fernandes (rubrica “Algumas Notas Toponímicas Ovarenses”, no "João Semana" de 01/11/1993), para o reprodu­zir na internet, no sítio “Artigos do Jornal João Semana”, algo de surpreendente aconteceu. Pedin­do o diretor-adjunto do jornal, Dr. Fernando Pinto, algumas fo­tografias para ilustrar o tex­to, uma delas, precisamente aquela que tínhamos ex­posto na capa do álbum, fez ressaltar aos meus olhos, do rebordo alto da janela que a emol­durava, a ima­gem da cruz que se manti­nha no alto do armário, em­butida na parede, levando-me, de imediato, a exclamar: – “Isto não pode ser um armário. Só pode ser um altar judaico, do tempo dos “cristãos novos”[9].
Consultando a Net e buscando o sítio “Olhares”, onde Fernando Pinto partilha o seu trabalho de fotografia, logo nos apercebemos da presença de um Ekhal judaico há pouco descoberto (na foto). Estava confirmada a dedução que desde há muito vínhamos fazen­do sobre o “estranho armário” de São Vicente de Pereira.

Na Rota do Judaísmo
Fechada uma etapa nesta aventura, outra se abria. Para além de um texto elucidativo a publicar na edição do “João Se­mana” de 15/06/2012, achámos prudente ouvir pessoas ligadas às práticas judaicas, para conhe­cimento do nosso achado e para garantir o maior rigor na sua transmissão escrita.
E foi mesmo no serão dessa noite (às 0h16 do dia 5 de junho de 2012) que seguiu o primei­ro e-mail informativo, enviado para a Sinagoga de Lisboa pelo jornalista Fernando Pinto.
Dias depois, por dever ético e cívico, demos conhecimen­to destes factos ao setor cultu­ral do Município, na pessoa do Técnico Superior da Câmara Municipal de Ovar Dr. António França, que se congratulou com a notícia, assumindo a tarefa de seguir os trâmites sobre achados patrimoniais, ações a que nos re­feriremos no próximo número.

Notas:
[1] Em 1498 o Rei D. Manuel I promulgou a lei que impunha a ex­pulsão dos judeus.
[2] Maria Gomes da Conceição era filha de Manuel Gomes Rodri­gues, de Cássemes, e de Maria Joana da Conceição (1746–1833), natural de S. Tiago de Riba Ul.
[3] Jornal "João Semana" de 15/09/1994: Património invulgar ‒ Uma atafona em São Vicente de Pereira".
[4] Revista "Reis" 2014, Ovar.
[5] "João Semana”, 01/02/2019.
[6] Terá a família Martins, de Válega, pelo casamento com Ana Maria Gomes da Conceição en­troncado com sangue hebreu? Ou será que a casa entra na família por compra?
[7] Revista “Reis” Ovar, 1997, pág. 48, “SOS por uma atafona exemplar único na região”.
[8] Nunca ali habitaram os dois sacerdotes Martins, que sempre re­sidiram na casa assobradada, da fa­mília, e que usavam a aquele espaço apenas como casa de arrumos.
[9] Lei de D. Manuel I, de 598.

Artigo publicado no jornal JOÃO SEMANA (1 de março de 2019)
https://artigosjornaljoaosemana.blogspot.com/2019/03/aron-hakodesh-de-sao-vicente-de-pereira.html
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Aron Hakodesh de São Vicente de Pereira
Mais do que história, o respeito (II)
Jornal JOÃO SEMANA (01/04/2019)
TEXTO: Manuel Pires Bastos

Às voltas com o Ekhal
À comunicação expedida de Ovar na madrugada de 5 de junho de 2012, via internet, pelo jornalista Fernando Pinto, sobre o Ekhal de São Vicente de Pereira, respondeu o rabino de Lisboa Eliezer Shai com uma sentença pronta e radical, mas não tão negativa como parece, atendendo ao espanto que lhe terá causado a referida informação:
"No judaísmo ou seja nas sina­gogas, não há altares, a única coi­sa que poderia ser, vendo que está pegado a uma parede, seria um Ekhal, o armário onde se guardam os rolos da Torá, mas dado o tama­nho não pode ser tal coisa. Portan­to, em resumo, não é um vestígio judaico"[1].
A posterior inserção do tex­to "Culto judaico em S. Vicente de Pereira?" na internet, no sítio "Artigos do jornal João Semana", foi suficiente para, pouco depois, recebermos do mesmo rabino a opinião de que provavelmente se tratava de um Ekhal.
À Câmara, na pessoa de Antó­nio França, caberia iniciar o proces­so de reconhecimento oficial e de classificação científica deste penta­centenário Aron Akodesh (Ekhal).

Início do processo
Associações judaicas em Por­tugal entenderam por bem incluir a notícia do achado no programa do 2.º Ciclo de Cultura Judaica reali­zado em Tomar e em Belmonte, em 19 e 20 de setembro de 2012, tendo o técnico da câmara apresentado algumas fotos do Ekhal e do edifí­cio e estruturas envolventes.
Entretanto, para a certificação e classificação deste património, a Câmara fez convites a peritos em arqueologia e história para visita­rem e se debruçarem sobre a es­trutura da habitação, com o quintal e a atafona, entre os quais Gabriel Rocha Pereira, Mestre em arqueo­logia, e Elvira Mea, docente uni­versitária.
O referido texto[2], publicado no sítio "Artigos do jornal João Semana" abriu uma inesperada cla­reira no horizonte do património judaico português.
Jorge Martins, autor da obra "Portugal e os Judeus", afirmou em 2 de outubro de 2012:
"Parabéns. Fizeram um ótimo trabalho. Essa casa (esse conjun­to) tem um valor inestimável para os estudos do criptojudaísmo. É imperioso recuperá-lo, dignificá-lo e dá-lo a conhecer. Inclusivamente contactar com a Rede de Judia­rias (se a Câmara assim o enten­der)"[3].
De José Levy Domingos, da Comunidade Judaica de Belmonte, a quem também pedíramos opinião sobre o assunto, recebemos a 20 de novembro de 2012, após o seu re­gresso do Brasil, esta agradável e pedagógica missiva:
‘Caro padre Manuel Pires Shalom Uvracha!!
(…) Depois de analisar pelas fotos, esperando em breve visitar no local este EKHAL (em sefar­dita, os Askenazim dizem ARON­-AH-KODESH) que significa "pa­lácio", numa alusão ao templo de Salomão, e depois de meus conhe­cimentos nesta área por tradição familiar judaica minha e pelos si­nais que encontro, NÃO TENHO DÚVIDAS DE QUE SE TRATA DE UM HEKHAL.
É importante dizer que este tipo de armários onde era depositado o rolo da Torah existia também em casas de famílias e aqui muitas ve­zes era o local das "Torinhas" que tantas vezes saiam em procissão, sobretudo em ocasiões festivas.
É importante referir que estes armários teriam uma função de culto familiar, aliás o judaísmo é sobretudo uma religião familiar na sua essência. Foi isso que preser­vou as nossas famílias resistentes e descendentes dos judeus da In­quisição e de outras “inquisições” quantas vezes políticas, sociais e económicas.
O Ekhal habitualmente divide­-se em duas partes, a superior, onde era colocado o Rolo ou o Livro da Lei, ladeado ou não pela vela. Ao lado poderia existir uma mísula como acontece nos casos de Freixo de Espada à Cinta ou Castelo de Vide. Na parte inferior seriam colocados os elementos li­túrgicos judaicos.
A cruz que encima o armário nada mais é do que a expressiva demonstração de uma cristianiza­ção forçada naturalmente’.
Também Jorge Patrão, Secretá­rio Geral das Judiarias de Portugal, nos felicitou, em 4 de novembro de 2012, por "esta fantástica desco­berta".

A ação da Câmara
A primeira das personalidades convidadas pela Câmara Municipal a deslocar-se ao local foi a inves­tigadora da Universidade do Porto Elvira Mea, que esteve em São Vi­cente de Pereira em 26 de outubro, tendo o "João Semana" registado esta visita em 1 de novembro se­guinte, com o texto "Confirmação do culto judaico em S. Vicente de Pereira[4] com registos fotográfi­cos, e em vídeo, do jornalista Fer­nando Pinto.


A investigadora voltaria ao lo­cal em 16/11 acompanhada pelo rabino Daniel Litvak, do Porto, que afirmou, numa atitude discreta, a importância do Ekhal.
Elvira Mea aconselhou um aprofundado estudo arqueológico e a pesquisa das fontes documentais das propriedades e seus donos, e em 20/11 enviou-nos cópia do seu "Parecer sobre o Ekhal do lugar de S. Geraldo, na freguesia de São Vi­cente de Pereira, Ovar".
Em 9 de novembro, o arqueólo­go Gabriel Rocha Pereira entregou também à Câmara o seu "Informe Técnico-científico".
Falecida no verão de 2013 a proprietária, D. Matilde Trigo, perguntava o jornal "João Sema­na" em 1/10 desse ano: "Altar judaico em S. Vicente de Pereira – Por que se espera?", pedindo a classificação oficial deste Ekhal, único na nossa região, citando Jorge Martins, atrás referido, e lembrando que os atuais proprie­tários estão sensíveis ao desejo de preservar este original espólio, de acordo com as normas que vigo­ram nesta matéria, esperando que "sejam iniciadas as diligências in­dispensáveis para o levantamento arqueológico recomendado em 26/10/2012, por Elvira Mea".

Casa afidalgada, no Porto da Igreja, S. Vicente de Pereira, adquirida a uma rica família de origem judaica pelo vicentino Elias Correia de Azevedo (dos Calrotes), casado com uma judia alemã, cuja família foi vítima dos nazis

Pesquisar mais fundo
Em 01/01/2014, o "João Sema­na" publica um texto do Dr. Gui­lherme Godgel de Oliveira Santos sobre este tema, em que o nosso distinto colaborador, com ligações familiares a S. Vicente de Pereira, afirma ser "um pouco enigmático, porque não há tradição nem no­tícia de famílias de judeus ou de cristãos-novos que houvessem vivi­do em S. Vicente. Além disso, esta região não é das que mais atraíram os seguidores da Tora"[5].
Em 28 de agosto de 2014, a Câmara Municipal de Ovar pedia à D.C. Centro parecer favorável so­bre a eventual classificação, e em reunião camarária de 18/12/2014 foi deliberado abrir processo de classificação não só do conjunto que integra o Aron Hakodesh ou Ekhal[6] e o espaço restante (con­tendo a atafona).
Em 23/02/2015, na visita de Isabel Policarpo Gertrudes Branco, técnica na área do Património, foi feita uma primeira inventariação dos elementos do edificado a clas­sificar como de interesse munici­pal ou público. Participaram nesta visita os elementos da comissão técnica apresentada pela Câmara, a saber: Ana Paula Reis, chefe da Divisão da Cultura, Raquel Elvas técnica da Divisão da Cultura, e António França, Técnico Superior, acompanhados pelo P.e Manuel Pires Bastos, pároco de Ovar e li­cenciado em História, e por Gabriel Pereira, Mestre em Arqueologia.
Desta visita foi publicada a se­guinte notícia no "João Semana":
"O edifício de propriedade particular, é modesto, mas rico em história. Desabitado há mais de um século[7], degrada-se a olhos vistos, com telhados abatidos. A mesma sala de culto, considerada um exemplar excecional do crip­tojudaísmo, merece – exige – uma rápida intervenção"[8].
A proposta de classificação do Haron como de Interesse Público é aceite em 5 de maio de 2015[9], enquanto a do restante espaço foi arquivada[10].


Notas:
[1] Internet, 05/06/12 (12h52).
[2] "João Semana", 15/06/2012.
[3] http://portugal e os judeus. blogspot.pt
[4] Ver http://artigosjornaljo­aosemana.blogspot.com/2012/06/culto-judaico-em-s-vicente-de-pe­reira.html.
[5] Pesquisas por nós avança­das nos livros de assentos paro­quiais de S. Vicente, mostram-nos haver essas ligações desde finais do século XVI, com topónimos de caráter bíblico.
[6] Ofício de 09/01/2015.
[7] É possível que a partir do século XVII o culto judaico fosse ali diminuindo, por as novas gera­ções judaicas se terem integrado na vida católica da freguesia.
[8] "João Semana", 01/04/2015.
[9] Edital 383/2015.
[10] Despacho do Diretor Geral da DCDC, de 12/10/2016.

Artigo publicado no jornal JOÃO SEMANA (1 de abril de 2019)
https://artigosjornaljoaosemana.blogspot.com/2019/03/aron-hakodesh-de-sao-vicente-de-pereira.html
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Aron Hakodesh de São Vicente de Pereira
Mais do que história, o respeito (III)
Jornal JOÃO SEMANA (15/11/2019)
TEXTO: Manuel Pires Bastos

Como temos escrito, coube-nos em sorte descobrir, ainda no século passado (a imagem que fotografámos e que aqui reproduzimos é de 1993), o Ekhal Aron Hakodesh que agora enche de expectativa todos os que prezam o património ovarense. Até porque – e não somos só nós que estamos convictos disso –, se não fora a nossa obstinada persistência perante a reação incrédula de muitos amigos, e, desde 2012, a sua difusão na internet, no sítio Artigos do jornal João Semana, editado pelo jornalista Fernando Pinto, este tesouro com mais de cinco séculos já estaria, por certo, destruído e para sempre silenciado.

Ekhal de S. Vicente de Pereira na História
Após a resposta sugerida, em 5 de junho de 2012, pela cruz que encima o Ekhal e que é tida como sinal de conversão (autêntica ou simulada) dos judeus à fé cris­tã, havia que celebrar e anunciar essa notícia, o que se fez no jor­nal "João Semana" de 15 de junho de 2012, e, ainda antes de entrar na tipografia, comunicando-a ao Dr. António França, dos Serviços Culturais da Câmara de Ovar, que a revelou a Susana Miranda, do Museu Judaico de Belmonte, por e-mail (16h49 de 12/06) assim redigido: "Na sequência do con­tacto encetado nesta tarde com V.ª Ex.cia, remete-se imagens e breve estudo realizado pelo P.e Manuel Pires Bastos relativo a uma estru­tura identificada numa ruina sita no lugar de S. Geraldo, freguesia de S. Vicente de Pereira, concelho de Ovar. Solicitamos a vossa cola­boração na validação da informa­ção reunida até à data"[1].

Foto tirada pelo padre Manuel Pires Bastos
(negativo original, descoberto pelo jornalista vareiro
Fernando Pinto a pedido do diretor do "JOÃO SEMANA"

Entretanto, os Serviços Cul­turais camarários promoveram a vinda a S. Vicente de Pereira de peritos em judaísmo, quer religio­sos, quer académicos, e estiveram presentes, através dos Drs. Vítor Ferreira e António França, no 2.º Ciclo de Cultura Judaica em To­mar e Belmonte (19 e 20 de se­tembro de 2012), abrindo as por­tas da imprensa, até aí alheada do assunto.
O parecer dos peritos e da Téc­nica Superior Mestre Isabel Poli­carpo (03/03/2015)[2], assinalando as características originais do Aron em questão, e reconhecendo a sua genuinidade e importância para o estudo do criptojudaísmo con­tribuiu para que o Aron viesse a ser registado como Património de Interesse Público, resolução toma­da pelo Diretor Geral da Cultura, Nuno Vassallo e Silva, aprovada em Conselho de Ministros (Dec.­-Lei n.º 30, 2015) e promulgada pelo Presidente da República em 27/02/2016, entrando em vigor em 1 de março seguinte, enquanto o espaço rústico, com casa do século XV, o pátio, a atafona e uma habi­tação do século XIX/XX[3], foram considerados de Interesse Munici­pal).

O Ekhal na Internet e na Imprensa
Logo que os pesquisadores de temas judaicos se deram con­ta do texto “Culto judaico em S. Vicente de Pereira?”, na internet, no sítio http://artigosjornaljoa­osemana.blogspot.com, o nome de S. Vicente de Pereira – é este o verdadeiro nome da freguesia[4] – passou a correr mundo e a ofere­cer novas pistas para o estudo do criptojudaísmo português.
Pedro Mendes consultou este sítio em 13 de novembro de 2012, e ali encontrou elementos que in­tegrou no seu trabalho académico “Os Hekhalot: Vestígios arque­ológicos de um criptojudaísmo singular”[5], onde refere, a pági­nas 257-258: “Geograficamente encontrámos 12 peças na zona raiana, e duas, a da Rua de São Miguel (Porto) e a de S. Vicente de Pereira (Ovar)"[6], no litoral. E citando António Marques e Lídia Fernandes em “Vestígios hebrai­cos na cidade da Guarda – So­bre um Aron Hakodesh[7], Pedro Mendes fala do isolamento de S. Vicente de Pereira, “embora vizi­nho da judiaria de Aveiro e da sua “acessibilidade garantida em situ­ação de fuga necessária”.
Segundo Pedro Mendes, a di­ferente dinâmica dos contextos so­cioculturais, atingiu um hibridismo morfológico, funcional e ritual que "justificaria exemplares como os da Malhada Sôrda ou S. Vicente de Pereira numa segunda fase". E constata que os vãos do Ekhal de S. Vicente são em arco tudor, da segunda metade do século XVI, e, tal como aconteceu em outros lugares, este conjunto teria duas utilizações: primeiro um armário litúrgico de família judia e, mais tarde, deixado o culto judaico, uma cantareira de cozinha, e, acrescen­tamos nós em face do que se depre­ende da foto original, um oratório e uma lareira[8].
Em 5 de outubro de 2016 a agência noticiosa LUSA publicou no seu sítio o texto "Ovar adqui­re património judaico centenário para o recuperar para promoção turística", acrescentando: "Em Ovar já se sabia da existência destas construções [a atafona e o Ekhal] há muito tempo, mas nun­ca houve a coragem de avançar com um projeto que permitisse a sua recuperação e divulgação ao público, declarou hoje à Lusa o presidente da autarquia, Salvador Malheiro".
Num ensaio inédito de Moisés Espírito Santo sobre "Marranismo judaico" ‒ Parte I, publicado na Revista de Letras, Artes e Ideias "Caliban" de 07/05/2017[9], é pu­blicada uma das fotos (MPB) do nosso texto de 15/06/2012, com a respetiva legenda. E na Inter­net (HJDCVS - Parte II, PDF), o texto "O Fascínio do Gótico. Um tri­buto a José Custódio Vieira da Silva" refere "as hipoteticamente características criptojudaicas dos Hekhalotes de Castelo de Vide e da Guarda", apresentando a se­guinte opinião sobre o Ekhal vi­centino": "Igualmente problemá­tico é o suposto Ekhal encontrado numa estrutura rústica arruinada em S. Vicente de Pereira, Ovar, que apresenta os dois vãos sobrepos­tos, ladeados por dois nichos mais pequenos situados ao nível da divisó­ria horizontal, con­tando ainda com o que foi interpretado como um orifício para uma mezu­zah". (Este porme­nor fora assinalado no "João Semana" de 15/06/2012).

Aquisição do prédio
Em 1 de outubro de 2018 es­crevíamos no “João Semana": “Os anos rolaram, deixando algum desgaste no conjunto edificado, constituído por uma antiga casa térrea, de lavoura, supostamente quinhentista, de que restam uma sala com um Ekhal (…), uma co­zinha destelhada (…), uma atafo­na (na foto). com casa de moinho”.


A aquisição do prédio (18/12/2018), por 125 mil euros, chamou finalmente a atenção da comunicação social para o imó­vel, informando ser propósito do Presidente da Câmara, Salvador Malheiro, “a sua recuperação, e incluir Ovar na Rota da Judiaria, contribuindo também, por esta via, para o desenvolvimento turístico e económico do concelho, atenden­do ao valor patrimonial, cultural e histórico deste local”[10]. A es­critura de compra foi assinada em 20/10/2019.
Entretanto, enquanto se aguar­dava o reconhecimento oficial do espaço do Património Público Cultural (D. R. 20/09/2017) e o início da prospeção arqueológica e das complexas obras de recons­trução, o telhado continuou em desgaste progressivo, causando danos na própria zona do Ekhal, que viria a ser protegida por um telheiro, encontrando-se, desde então, vedada a visitantes.
Em 3 de março de 2019, o sí­tio "Ovarnews", ao noticiar o fe­cho das festas do padroeiro de São Vicente (22 e 23 de janeiro), re­feriu que o presidente da Assem­bleia da União de Freguesias de Ovar, S. João, Arada e S. Vicente de Pereira, Prof. José Fragateiro, prestou homenagem “à população por ter na freguesia este patrimó­nio, à Câmara Municipal por o ter adquirido e estar a recuperar, e ao Padre Bastos, que o descobriu e partilhou”, enquanto o presidente, Bruno Oliveira, fez votos para que "os projetos de reabilitação e pos­terior integração na Rota Judaica em Portugal possam tornar-se em breve uma realidade".

Notas
[1] Esta informação justifica a correção da "Nota Histórico-Artística" sobre o Aron Hakodesh de Ovar inserida desde 2016 no sítio oficial da Direção Geral do Património Cultural" (DGPC), onde, entre outras imprecisões – a casa de sobrado é do século XIX –, se afirma: "Foi em 2012 que os técnicos da Câmara Municipal de Ovar, em conjunto com o Padre Manuel Pires Bastos, localizaram um armário de formato singular no interior de uma casa em ruína, edificada no século XVI". A verdade é que o autor deste texto encontrou essas ruínas em finais do século passado. (A foto, em cima, é de 1993).
[2] “João Semana”, 01/04/2015.
[3] Ali viveram familiares do P.e Juiz Dr. Martins, que residia no mesmo lugar do Rexio de Cássemes, mas na casa do outro lado da estrada.
[4] S. Vicente de Pereira é o verdadeiro nome da freguesia, topónimo que, contra a lógica, a história, a geografia e a toponímia, anda acrescido de Jusã (= de baixo), acrescento que pertence a outro lugar de Pereira, da freguesia de Válega, lugar esse que até 1852 foi vila e sede do concelho de Pereira Jusã, pouco abaixo (a jusante) de S. Vicente de Pereira. Note-se que, no tempo de D. Dinis e D. Afonso III, S. Vicente de Pereira aparece também como de Pereira Susã (= de cima). Ver no sítio do "João Semana" o artigo "S. Vicente de Pereira, sim, S. Vicente de Pereira Jusã não".
[5] Hekhalot é o plural de Ekhal.
[6] Portugal, Nona série, vol. 39, Porto, DCTP – FLUP 2018, pp 253-278.
[7] Ed. Afrontamento, 2004.
[8] Portugalia, Nova Série, vol. 39, Porto, (DCTP-FLUP 2018, págs. 253-278.
[9] https://revistacaliban.net/marranismo-judaico-parte-i-74e73b0d1513.
[10] "João Semana", 01/10/2018.

Artigo publicado no jornal JOÃO SEMANA (15 de novembro de 2019)
https://artigosjornaljoaosemana.blogspot.com/2019/03/aron-hakodesh-de-sao-vicente-de-pereira.html